Eu devia ter uns quinze anos. Não lembro bem. Lembro que estava um calor dos infernos. Sempre fui sensível ao calor. Estava usando um vestido florido. Eu sempre gostei desses vestidinhos floridos. Usava desde criança e não tinha a menor idéia que alguém pudesse me ver sem ser assim - como pouco mais que criança que eu era. Não passava pela minha cabeça que um adulto pudesse ver nos meus seios e na minha bunda algo de mulher adulta. Eu andava com aquele jeito de patinho recém saído do ovo que os adolescentes tem.
Então eu fui fazer alguma coisa, não lembro o que, no centro da cidade. O que significava ficar fora de casa meia hora. Lembro do meu vestido. De alças, no meio das coxas. Ele era castanho claro coberto de florzinhas azuis minúsculas. Para mim, faz pensar em crianças ou em cenas idílicas no Mediterrâneo, um vestidinho assim. Meu cabelo estava solto e pela época em que busco essa memória, eu devia estar usando minha pulseira de oração de Kwan Yin - a primeira delas- como único adorno.
A lembrança começa a ficar clara com o cara de bicicleta. Eu me assustei porque ele quase me atropelou enquanto gritava alguma coisa que eu não entendi - e que depois caiu a ficha que era um comentário sobre mim. Lembro do rosto dele - ele devia ter quase cinquenta anos.
Poucos minutos depois, foram outros caras. Eles gritavam. Isso me deixou muito assustada. Não só pelo que eles diziam que fariam, mas porque eram duas horas da tarde. E ninguém parecia achar estranho que caras mais velhos que meu pai gritassem barbaridades para uma adolescente.
Lembro de desistir e dar meia volta. Lembro de estar voltando, e logo depois de atravessar a passarela (o que me deixava tecnicamente na rua da minha casa), um bando de gente, algo entre dez e quinze caras, todos bem mais velhos do que eu, começarem a ir atrás de mim.
Eu lembro que eu corri. E lembro que eles correram atrás de mim. E falavam coisas horríveis. E eu experimentei um pânico absoluto enquanto corria tentando chegar dentro da prefeitura. Porque na prefeitura tinha seguranças, mas principalmente, porque na prefeitura tinha meu pai e seus colegas de trabalho, que bateriam em quem tentasse chegar perto.
Pode parecer pouco para quem olha de fora. Mas para mim, aqueles minutos enquanto mais de dez homens adultos iam atrás de mim falando obscenidades, em plena luz do dia, na rua da minha casa, foram uma das experiências aterrorizantes da minha vida.
Lembro que depois de me enfiar pelo setor onde meu velho trabalhava a dentro sem explicações maiores, eu levei quase uma hora para ter coragem de falar sobre o que tinha acontecido. Porque eu senti vergonha. Como se a errada fosse eu.
E mesmo naquela época entendendo que não era assim, essa é a primeira vez na minha vida que coloco em palavras esse fato. Tenho vinte sete hoje e não uso vestido curto na rua desde então. Honrosas excessões quando eu estava indo para a balada, sobretudo fechado até os tornozelos, até chegar na porta, olhando por cima dos ombros, cercada de amigos. Cheguei a ir com uma roupa e trocar dentro da balada porque tinha medo, por estar sozinha.
Não consigo ficar confortável. A sensação é que de algum lugar, vai sair alguém gritando barbaridades para mim. E não importa que não sou mais adolescente, que sou adulta, que já dei bordoada em cara sem noção, que sei gritar por socorro, que sou ativista e que cresci para ser mulher com orgulho e diante de tudo. O medo ainda me impede de sair na rua usando um vestidinho florido, desses que fazem pensar em filmes italianos e crianças.
Por isso eu sei que um crime contra uma mulher é um crime contra todas as mulheres.
Porque a maioria das minhas amigas já teve que fugir de alguém que a perseguia. Ou apanhou de um namorado ou marido. Ou vive uma ditadura de medo e silêncio nas mãos de um padastro. Porque já sofri e já vi sofrerem todo tipo de discriminação por sermos mulheres.
Cansei de ser chamada de puta. Cansei de ver amigas minhas serem chamadas de puta, vagabunda, piranha, porque andamos com amigos homens e porque temos orgulho de sentirmos prazer e de sermos livres. Cansei do olhar de repúdio porque fui criada para me envolver com os homens pelo desejo e não porque dependo deles.
Além de tudo que vi na escola.
Uma aluna minha, na época. Ameaçada porque a mãe decidiu se divorciar e o padrasto queria matar a menina como vingança. Uma professora se mudando para o interior de outro estado e voltando anos depois, fugindo do marido e do cárcere privado. Mulheres que foram agredidas por pais, maridos, padrastos, filhos, vizinhos, porque "não se comportavam como uma mulher de bem". Uma aluna espancada pelo pai porque treinava com skate - queria ser skatista profissional. Uma aluna arremessada escada abaixo pelo padrasto porque mulher não pode levantar a voz para homem (ele havia dado um tapa nela porque ela estava comendo uma maçã, e ela perguntou porque ele fez isso). tudo isso sem esforço de memória - eu poderia escrever por horas.
É isso que eu via na minha mente olhando o vídeo do que fizeram com a moça.
Eu me senti agredida. Ali, não era a Geisy. Era a Sarah. A Cecilia. A Norma. A Luana. A Tathy. A Inês. A Carol. A Cíntia. A Fabiana. A Janis. A Fernanda. A Ísis. A Patrícia. A Iony. A Alex. A Estela. A Mônica. A Ana. A Cássia. A Carla. A Angélica. A Elaine. A Odília. A Joana. A Deise. A Eunice. A Mercedes. A Clarice. A Celina. A Floripes. A Maria. A Bianca. A Júlia.
Era eu.
Era cada uma das mulheres que eu amo.
Era cada uma das mulheres que eu conheço.
Era cada uma das mulheres que eu não conheço.
Era cada mulher do mundo.
Porque não era a moça que estava ali que eles viam. Era uma Mulher. Uma mulher indecorosa. Uma mulher de rosa choque. E por ser mulher é que eles se sentiam superiores, a vontade para impor sua visão de macho. Que aquelas que foram criadas para serem decorosas, pudicas e frígidas, se sentissem incomodadas por alguém que lembrava que elas não precisavam ser decorosas e infelizes.
E pior - que os outros todos achassem que era aquilo mesmo, que não havia o que fazer, e com medo da turba, não impedissem. Porque pior que a ação dos maus é o silêncio dos que acham que podem lavar as mãos.
a foto do vestido vem daqui.
3 comentários:
Muito foda esse seu escrito companehiar de Panzer, Sarah Jones!Mulher melancia pode....uma anonima não pode...pq a anonima foge do dominio do macho...ela trsngride...a melancia é paga...logo é dominada. Todas podemos!!!
Concordo com a Iony!!
Acho que o pior de tudo é a ela ter passado de vítima para culpada....li e ouvi várias pessoas dizendo que ela fez por merecer!!! O que mais me impressionou é que eram todos jovens.....
Adorei seu post!!!
Conclamo a Sibele, nossa mãe que sabe vingar os seus, que jogue sua maldição sobre estes que ousam maltratar sua imagem.
Opressão é dominação, a liberdade pela metade não existe, a liberdade na ignorância não é possível.
Lembremo-nos, a diversidade cultural tem seu limite nas direitos humanos segundo a UNESCO.
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