Nos anos anteriores eu organizei a blogagem mas não escrevi. Resolvi que esse ano, eu escreveria. E aqui estou eu.
Não é fácil. Com baixa estatura, sobrepeso, óculos, ouvidos e joelhos ruins. Amar essa coisa que me faz prisioneira? Minha maior raiva do meu corpo não é não ser bonita o suficiente. É me achar fraca demais, inábil demais, incapaz demais. Além do inferno cada vez que vou procurar uma roupa, cada vez que me olho no espelho e penso porque parece que nenhuma roupa me cai bem... e do fato de sempre sentir que estou fazendo tudo errado e que mereço se morta por isso. (e é sério - a sensação é essa mesmo, de merecer morrer quando cometo um erro).
E de repente me dou conta que não sou a Martha Stewart. Porque ela é fake até a raiz.Acho que aceitar essa comparação já seria motivo para fazer todas as mulheres que eu admiro e em que me espelho caírem de paulada em cima de mim com razão.
Além de um eventual escândalo com sonegação de impostos, a Martha Stewart é a "mulher moderna perfeita" das revistas femininas que eu odeio. Um misto de dona de casa com artesã impecável e decoradora de interiores. Algo do tipo casa perfeita- filhos perfeitos - família perfeita- roupas perfeitas - coisas perfeitas feitas por ela mesma. O comercial de margarina elevado à décima potência.
Os cupcakes na Martha não vazam das forminhas porque ela errou a temperatura do forno (porque estava escrevendo ficção científica enquanto cozinhava, sabe). Só os meus fazem isso. As crianças do mundo da Martha sempre tem o material escola impecável. Só eu escrevo com caneta bic o nome do meu filho nas coisas dele (porque estava preocupada demais brincando de massinha para me ocupar com isso). As roupas que ela tricota caem perfeitamente em seu corpo muito bom para a idade enquanto seus cabelos loiros estão perfeitamente penteados. Eu tenho um cachecol pela metade a dois anos e meu cabelo tem frizz (eu descobri o que era frizz só ano passado porque estava ocupada demais vivendo, fazendo cosplay, indo a shows, fazendo exposições, terminando a faculdade aos 20, construindo minha casa, minha vida e minha história para me preocupar com cabelo - ele sempre termina bagunçado mesmo).
Pode parece avulso falar de assuntos que não estão relacionados ao corpo de forma direta. Mas eles são faces da mesma moeda. A moeda que me faz ter vergonha do meu corpo é a mesma que me faz ter vergonha de não ser uma mulher convencional e não fazer as coisas que uma mulher deveria fazer.
A realidade é que o tempo todo nossa sociedade exige de nós mulheres que nos encaixemos em estereótipos. E eu, meio menininho, de unhas coloridas e roupa rasgada, com meus grandes olhos amarelados e meu cabelo imenso e sem amarras, penei a vida inteira por saber disso. Porque não, eu não me encaixava e não vou me encaixar no estereótipo. Mas principalmente, porque sabendo disso, eu não posso permitir que meu silêncio deixe outras pessoas sofrerem com esses mesmos estereótipos.
Então a pergunta é: Sarah Helena, você ama seu corpo?
E minha resposta não é nada simples. Eu nasci em uma sociedade onde amar a si mesmo é um pecado. E então eu cresci para abraçar uma fé e uma filosofia de vida onde não reconhecer seu próprio valor é um crime contra tudo que é sagrado - e contra eu mesma. Eu luto a cada dia para desvestir o manto de dedos apontados, de risadas maldosas e de humilhações que minha sociedade teceu e vestiu em cada mulher, uma burca que foi costurada na nossa alma. Eu luto todo dia para aprender a me amar.
E quer saber?
Eu sou foda. Porque esse corpo e essa mente, tão inaptos, tão toscos, tão incapazes, já me renderam mais vitórias em 29 anos do que o de muita gente em uma vida inteira.
Eu tenho uma tatuagem e cicatrizes que me enchem de orgulho - e virão muitas mais. Eu tenho a memória corporal de um parto natural e não hospitalar. Eu tenho mãos de dedos compridos e tortos que herdei das minhas avós e nonas e a voz grave e rouca de quem vive com intensidade. Eu tenho nos ouvidos as vozes de dezenas de pessoas, acho que mais do que só dezenas, que disseram que me admiram, que me falaram que eu as surpreendi. Porque é cotidiano para mim o olhar de espanto e admiração que as pessoas tem quando eu falo - porque eu sei do que eu estou falando e porque elas não esperam que uma mulher da minha idade tenha essa segurança e esse conhecimento. (e não, eu não tenho essa segurança. mas é preciso. e cada vez que dizem isso, me surpreendo e fico vermelha e sem jeito; e é tão importante para mim e me sustenta)
E esse corpo, me permitiu ter quem eu desejei, mesmo quando eu achei que era tudo menos desejável. E eu dancei e ri e caminhei e subi trilhas e beijei e transei e fugi e pulei muro. E eu posso dizer que não me irrita meu corpo, mas a indústria miserável que nega a minha forma - a forma que é característica das mulheres do meu país, mulheres pequenas de ancas largas e tornozelos grossos. E que nega a forma (afro) de muitas amigas minhas, magrinhas, de seios miúdos e pernas longas. E nos forçam a tentar sermos cabides de roupas feitas para mulheres irreais.
E tentam nos fazer caber, do mesmo jeito, em casamentos irreais, profissões irreais, vidas irreais. Querem dizer como temos que fazer tudo. E sinto muito. No meu mundo as mulheres vivem sem pedir licença. E não vou aceitar que ninguém diga que estamos erradas.
ps- e eu não vejo nada de errado em se diferente de mim. Pelo contrário. Somos fortes por sermos únicas. Só não posso aceitar que tentem obrigar a mim ou a qualquer uma a ser qualquer coisa que ela não deseje de verdade ser (desejo próprio, não imposto pela mídia lá fora)
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